Direito Nosso

Decisão Judicial MP-RJ x JMJ

Decisão

Ação Civil Pública Proc.nº 0235877-58.2013.8.19.0001. DECISÃO Vistos, etc… Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido liminar, ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em face do Município do Rio do Janeiro, Instituto Jornada Mundial da Juventude Rio de Janeiro, Dream Factory Comunicação e Eventos Ltda, BEM Guanabara Emergências Médicas, Savior Medical Service Ltda, Sistema de Emergência Medica Móvel do Rio de Janeiro Ltda – Vida Emergências Medicas, SRCOM Promoções Culturais Ltda e SRCOM Produções e Marketing Ltda, tendo por objeto o Edital de Pregão Presencial 0396/2013.

Aduz o Autor em sua petição inicial que o referido ato convocatório tem por objeto a prestação de serviço de atendimento médico da Jornada Mundial da Juventude a ser realizado entre os dias 23 a 28 de julho próximo. O Ministério Público sustenta em sua inicial que o evento de natureza religiosa, de responsabilidade da Igreja Católica e de caráter privado foi anunciado há 02 anos, tendo como sede esta cidade do Rio de Janeiro, o que demandaria medidas de planejamento para execução por parte da Igreja Católica, aqui incluída assistência em saúde dos participantes do evento, caracterizado como ´especial´ ou ´de massa´ pela legislação vigente, sendo o 2º Réu (Instituto JMJ) criado em maio/2011 com a finalidade de providenciar o necessário para a execução de ações.

Contudo, referido Instituto somente em janeiro/2012 firmou contrato de prestação de serviços com a 3ª Ré (Dream Factory) ocasião que reconheceu a necessidade de auxilio de empresa especializada em eventos internacionais de grande porte, observada a estimativa de público de mais de dois milhões e meio de pessoas. O autor realizou reuniões com entes privados e órgãos públicos responsáveis pela área de saúde do evento, apresentando-se o 2º e 3º Réus como responsáveis até a data de 12/06/2013.

Todavia, em 24/06/2013 foi o Autor surpreendido com a noticia que a contratada DREAM FACTORY (3ª Ré) não mais estaria responsável pelas ações em saúde do evento. Em 03/07/2003 sobreveio a informação de que a Secretaria Municipal de Saúde assumiria a execução quanto aos atos públicos em Copacabana, Guaratiba e Gloria. Em reunião no dia 04/07/2013 foi entregue ao autor cópia do procedimento administrativo que culminou com a publicação do aviso de edital para o Pregão Presencial nº 0396/2013 em 01/07/2013 no Diário Oficial, objeto desta ação. Referido ato foi gravado, tendo a representante da 4ª Ré (BEM) afirmado na ocasião que o processo de contratação somente seria alterado quanto à forma de pagamento, pois, doravante, o Município assumiria a responsabilidade, com assunção da contratação e gerência dos serviços de saúde em substituição aos organizadores do evento, sendo as empresas orientadas a se inscrever no pregão respectivo com as mesmas propostas. Sustenta o autor que o ato licitatório seria ilegal, invocando, para tanto, em breve resumo, os seguintes argumentos:

1-ocorrência de desvio de finalidade por indevida assunção pelo Município da execução dos serviços de saúde em evento privado, eis que deve atuar somente como articulador, com prestação nos casos de urgência e emergência, exceto móvel;

2 – favorecimento de empresas particulares, ora rés, por já previamente informadas de como deveriam participar da licitação, não sendo possível que outras se estruturem por demandar preparo e tempo razoável, quebrando o caráter competitivo, pretendendo o Município dar contorno de legalidade à licitação com o objetivo de legitimar a escolha das empresas contratadas pelo Instituto;

3 – descumprimento do prazo mínimo de 30 dias antes da data do evento para cadastramento visando autorizações pelo Corpo de Bombeiros e CREMERJ da Certidão de Anotação de Responsabilidade Técnica (CART) e liberação da FARE com projeto de atendimento médico, nos termos da Resolução CREMERJ 187/2003 e Resolução SESDEC 80/2007;

4- nulidade do processo administrativo por inexistir cotação prévia dos custos unitários para avaliação dos projetos básicos, tendo sido este autorizado no mesmo dia (24/06) e reproduzidos os valores indicados pelas prestadoras de serviço, observado os comprovados contatos mantidos com servidores em data posterior solicitando informações de ata de registro de preços em vigor, quando a ampla pesquisa é requisito de validade do procedimento. Ademais, dois lotes somente possuem esboço de planilha, além de apontarem valores redondos, sendo incomum ocorrer, tendo o edital restrita divulgação em afronta ao que determina o Decreto Municipal 30538/2009.

Na hipótese de ser negado o pedido de nulidade, deverá ser obstada a participação das empresas cujos projetos serviram de base ao procedimento licitatório. Com amparo nestes argumentos, o Autor formulou o seguinte pedido liminar:

1- a suspensão imediata dos efeitos do Edital de Pregão Presencial n. 0396/2013, vedando-se por consequência a prática de quaisquer atos previstos no referido instrumento editalicio, devendo o Município do RJ, ora primeiro réu, ser impedido de qualquer forma, de transferir recursos públicos, direta ou indiretamente, ou mesmo por meio de contratação emergencial para serviços de saúde que deveriam ser custeados pela organização do evento, conforme legislação já referida nos itens 1. 3 e 3 desta, para o evento Jornada Mundial da Juventude 2013;

2- Caso o pedido acima não seja acolhido, alternativamente, sejam as empresas rés impedidas de participar do aludido certame, na medida em que, tendo acesso a informações privilegiadas ao tempo da sua elaboração, impediram sobre o certame pairassem os postulados da isonomia e da concorrência livre e em igualdade de condições entre outros possíveis participantes da licitação;

3- seja determinado o imediato bloqueio da verba orçamentária de R$ 7.840.636,54 (sete milhões oitocentos e quarenta mil seiscentos e trinta e seis reais e cinquenta e quatro centavos), antes destinada a efetivação do Edital de Pregão Presencial n. 396/2013, para fins de destinação futura a programas de saúde constantes dos instrumentos de gestão da saúde – Plano Municipal de Saúde 2014/2017 e Programação Anual de Saúde – PAS 2014/2017;

o 4- seja determinada ao Instituto JMJ – Rio, imediatamente, a obrigação de fazer consistente na manutenção de toda a programação de atenção à saúde preexistente ao tempo do lançamento do Edital de Pregão acima mencionado, seja mantendo-se as contratações já existentes ou celebrando novos contratos, também de natureza privada, que garantam, no mínimo, os serviços já programados pela organização do evento, nos exatos termos do que preconizam a Resolução CREMERJ n. 187/2003 e Resolução SESDEC n. 80, de 18 de julho de 2007, sob pena de cancelamento total ou parcial dos eventos que integram a Programação da JMJ Rio 2013;

5- em virtude da premência do tempo, em deferidos os pedidos acima seja determinada a expedição de oficio aos requeridos, por fax com a devida comunicação e ordem para que tomem as providências cabíveis no sentido de fazer cumprir a decisão judicial, apresentando em juízo, no prazo máximo de 48h a contar da ciência da decisão, a comprovação do seu imediato cumprimento, sob pena de multa diária no valor de R$ 50.000,00 para cada réu, a ser revertida para o Fundo Municipal de Saúde para fins de aplicação em serviços de saúde;

6- sejam expedidos oficios aos órgãos de Vigilância Sanitária Municipal e Estadual, ao CREMERJ e ao 1º GSE do Corpo de Bombeiros, comunicando a existência da presente ação judicial e o deferimento da liminar (enviando cópia da mesma), solicitando: i) que informem a este d. Juízo, no prazo máximo de cinco dias antes do início da Jornada Mundial da Juventude, se há condições técnicas na área da saúde para a realização da Jornada Mundial da Juventude; ii) para que promovam aos atos de fiscalização e controle respectivo, verificando, inclusive, o cumprimento integral pelos réus da tutela de urgência deferida;

Determinada a manifestação do Município em prazo fixado para decisão liminar, veio aos autos a peça de fls. onde oferta impugnação sustentando que o ENCONTRO JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE é caracterizado como uma semana de eventos religiosos e culturais, incluindo exposições, apresentações musicais e teatrais para os jovens e com os jovens do mundo todo. Aduz que estarão presentes, além do Papa (Chefe de Estado), governantes de diversas origens, a Presidente da República e outros Chefes de Estado, inúmeros artistas que se apresentarão durante os eventos, incluindo a programação oficial Atos Centrais, Especiais e Protocolares, tendo a Câmara Municipal decretado feriado, diante do tamanho do impacto que causará. Evidencia que evento não pode ser caracterizado como privado, tanto que decorreu de convite do Governo Brasileiro através da Presidência da República que, inclusive, comprometeu-se a colocar a infraestrutura federal para a sua realização, estando mobilizados efetivos, recursos e equipamentos das Forças Armadas, Policia Federal e Força Nacional para garantia da segurança. Dispor de estrutura mínima de atendimento médico nos locais de maior concentração dos eventos é obrigação do Sistema de Saúde Municipal, não podendo se conceber que evento de tal magnitude e visibilidade mundial tenha natureza privada. Diante da infraestrutura que deve o Município dispor para apoio de evento de massa, conferindo atendimento à saúde dos participantes, as normas contidas nas Resoluções mencionadas pelo Ministério Público na inicial devem ser atendidas para que seja autorizada sua realização, o que se fará através do pregão presencial ora questionado pelo Autor. No que pertine ao certame licitatório registra que o pregão é do tipo MENOR PREÇO POR LOTE gerando maior economicidade para a administração diante do incentivo à competição, sendo a estimativa orçada a partir dos preços contratados habitualmente pelo Sistema de Saúde Municipal e com base na experiência em grandes eventos (réveillon e carnaval|), observando que o material não consumido reverterá para a prestação na rede municipal de saúde, sendo a publicidade do certame estendida para 12 dias, enquanto a legislação exige 08, tudo visando ampliar a disputa. Finaliza que a pretensão do autor é ilegal, injurídica e incompreensível, postulando o indeferimento do pedido.

Relatado, passo a decidir. De início deve ser destacado que esta magistrada não desconhece a necessidade de se utilizar extrema prudência e moderação em pleitos liminares formulados em Ações Civis Públicas, especialmente quando se trate de questões envolvendo evento de grande vulto e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, conforme acentua a doutrina de Rodolfo Camargo Mancuso, verbis: ´ Aplicável que seja a antecipação dos efeitos da tutela no âmbito da ação civil pública, essa técnica processual, contudo, deverá ser empreendida com a devida cautela e moderação, pelo fato de que aí não se está no plano da jurisdição singular, onde os contraditores agitam posições jurídicas individuais, e sim no plano da jurisdição coletiva, em que o autor da ação na verdade se apresenta como um representante adequado de certas massas de interesses de interesses (difusos, coletivos, individuais homogêneos), concernentes, pois, a segmentos mais ou menos expandidos ao interior da sociedade civil, donde os efeitos do julgado se projetarem, conforme o caso, ultra partes ou mesmo erga omnes.´ (Ação Civil Pública em defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores. 8ª edição revistada e atualizada. Editora Malheiros. 2002, pág. 95) Do mesmo modo é importante salientar o entendimento já diversas vezes reiterado por este Juízo, de que a decisão que aprecia a medida liminar é fundada em ´mero juízo de delibação, motivado pelo reconhecimento da ocorrência, ou não, dos requisitos inerentes à plausibilidade jurídica e ao periculum in mora´. (STF, Pet. 2.570-9/RJ, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJ de 28.06.2002).

No que pertine ao argumento apresentado pelo Autor de que haveria desvio de finalidade no custeio, pelo Poder Público, de serviços de saúde inerentes ao evento organizado por entidade privada e com ligação a questão religiosa (Jornada Mundial da Juventude realizada pela Igreja Católica) a discussão centra-se na idéia de o Estado Brasileiro ser laico, assim como da utilização de recursos públicos para evento de natureza privada. No tocante ao segundo, princípio republicano da laicização do Estado Brasileiro, não parece que tal princípio tenha o condão de impedir que o Poder Público, mediante razões de interesse público fundadas em conveniência e oportunidade, esteja impedido de participar ativamente de evento desta natureza, cuja importância não demanda maiores digressões, eis tratar-se de fato público e notório.

A decisão político administrativa de custear, com recursos públicos, o citado evento de grandeza inestimável, com a presença do Papa e a reunião de diversas nacionalidades, parece inserir-se em campo de discricionariedade reservado aos ocupantes de cargo público, cuja legitimidade foi adquirida por intermédio do sufrágio. A avaliação da conveniência e da oportunidade em custear o citado serviço constitui típico mérito administrativo, eis que a ordem jurídica, em determinadas situações, outorga ao ocupante do cargo público certo espaço de valoração para decidir pela medida que lhe pareça mais adequada ao atendimento do interesse público primário.

O afastamento do Estado em relação à religião, conquista da modernidade e da própria concepção de Estado Republicano, não tem o condão de impedir que o administrador público, fundado em razões de interesse público, decida por custear, com recursos do erário, determinados serviços que serão prestados aos participantes de evento desta natureza, ainda que haja, quanto ao mesmo, conotação religiosa.

A referida conduta não caracteriza qualquer desvio de finalidade, nem tampouco confusão entre Estado e Igreja, eis que assim agindo não estará o Poder Público agindo com base em elementos religiosos, nem tampouco utilizando-se de recursos públicos para beneficiar esta ou aquela religião. Assim tenho que o destino dos recursos públicos, no presente caso, é a prestação de serviços essenciais ao bom funcionamento do evento, repercutindo na esfera de milhares de pessoas, tudo a demonstrar que ao menos em princípio há um inegável interesse público a justificar a escolha político administrativa. Ainda que se pudesse suscitar argumentos em desfavor da escolha administrativa, tais argumentos não são de natureza jurídica, tratando-se de opiniões de cunho subjetivo que, por esta razão, não pode condicionar ou restringir o espaço de atuação discricionária que a ordem jurídica outorga aqueles que detenham a legitimidade democrática para tanto.

De outra ponta, o evento em pauta, em verdade, apresenta-se com nítido contorno público, mormente o convite formulado pela própria Presidência da República, com envolvimento de atuação federal na segurança do mesmo, além da esperada presença de diversos outros Chefes de Estado, ainda que não se cogite aqui da presença de inúmeros artistas que se apresentarão. Já quanto aos argumentos de que o procedimento de escolha (licitação) em si contém vícios, as provas trazidas aos autos não importam em juízo de verossimilhança suficientes para que se assente a existência de favorecimento em relação às empresas Rés. O fato de que as mesmas foram comunicadas a participar do procedimento licitatório em razão da alteração do modelo de contratação não constitui fundamento suficiente para, por si só, afirma a existência de violação a competitividade. O que deve ser importante para fins de aferição da violação a competitividade são as regras formais do próprio procedimento, não sendo influente, ao menos em sede de delibação sumária, que determinadas empresas tenham contato anterior com os dados que fundamenta a licitação, a não ser que os mesmos não fossem disponibilizados aos demais interessados em participar do certame ou que houvesse cláusulas de restrição da participação, o que parece inexistir no caso. Do mesmo modo, a questão atinente as planilhas de preço e as pesquisas de mercado que devem anteceder a sua formulação, tratam-se de matérias que dependem de dilação probatória cuja complexidade não permite seu juízo de verossimilhança nessa fase do processo. Mas ainda que assim não fosse a tese de que inexistiu pesquisa de preços cuja amplitude seria desejada pelo Autor não atinge a higidez do procedimento de licitação, eis que a análise das Atas de Registro de Preço constitui mecanismo de aferição dos preços praticados pelo mercado que contrata com o Poder Público. Vale registrar que a Ata de Registro de Preços é consequência de um procedimento licitatório amplo, anteriormente realizado pelo Poder Público, e que por isso representa sim os preços praticados no mercado quanto aos itens constantes das planilhas. Por fim, é de se destacar que o deferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tutela, nesse momento, tem a potencialidade de gerar um risco inverso infinitamente maior do que aquele que porventura pudesse ocorrer na hipótese de serem procedentes os argumentos veiculados pelo Autor.

O magistrado, nesses casos, deve ser prudente e agir com extrema cautela, eis que medida de natureza liminar como a que pretende o Autor pode gerar um cenário de absoluta insegurança e descrédito ao país, além de prejudicar milhares de pessoas que virão ao Rio de Janeiro para participar do evento com a certeza de que haverá serviços destinados a garantir sua saúde.

Por estas razões, indefiro o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, eis que ausentes os requisitos que ensejariam a sua concessão.

P-se.I-se. Rio de Janeiro, 11 de julho de 2013.

ROSELI NALIN JUIZ DE DIREITO

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.